“Nunca trabalhei tanto!”. Essa é a frase que tenho escutado rotineiramente. Essa parece a tônica da produtividade dos últimos meses, as fronteiras entre o trabalho e a nossa casa foram desconstruídas e aderimos ao tal homeoffice. Na verdade, não é que trabalhamos em casa, fizemos de nosso lar um trabalho constante que não tem fim. “Ah, mas você precisa se organizar, separar os horários!”, dizem os coachs do produtivismo. Dá vontade de responder “se eu conseguir ir ao banheiro sem levar o celular já estou no lucro!”. Se bem que é ótimo levar o celular para o banheiro e ficar escondida lá por um tempo do restante da família (que também está de homeoffice), até que lembramos que o filho pode ter largado o vídeo game e estar de alguma forma incendiando a casa.

 

Bem, passando por cima de todos os detalhes sórdidos dessa demanda, estamos paulatinamente nos adaptando à lógica do neoliberalismo. O empresariamento de si, os dispositivos de controle e agenciamentos da nossa subjetividade cada vez mais fazem parte do nosso modo de agir, e mesmo quando temos noção deste processo é muito difícil não fazer parte dele. A uberização tomou conta da vida do trabalhador, mas não pense que quem está na vida acadêmica está fazendo algo muito distante disso.

 

A produção acadêmica (para compor o lattes) não está alinhada à mesma lógica do produtivismo? Um pai que assiste aulas remotas da universidade ninando o filho não está submetido a essa mesma lógica? As mulheres que reproduzem o discurso de terem múltiplas habilidades e são capazes de realizar inúmeras tarefas ao mesmo tempo não colaboram para o cenário do produtivismo?

 

Sim, nós mulheres aprendemos que somos capazes de fazer mil coisas ao mesmo tempo, que podemos escrever um artigo enquanto o frango está assando no forno, porque tal hora precisamos levar o menino ao médico e quando voltar a comida tem de estar pronta. Aí tomamos banho ouvindo aquela conferência incrível no Youtube e dirigimos ouvindo o podcast sobre política. Tudo isso para conseguir terminar o tal artigo amanhã cedo, porque à tarde temos que dar aula, então hoje à noite não vou ficar com meu marido porque preciso preparar a aula. Ah, mas não posso deixar o marido, então fico com marido, mas pensando na aula. E tudo isso acontece enquanto responde mil e trezentas mensagens em redes sociais. No dia seguinte, com variações, tudo se repete em um ciclo infinito. Ufa! Fiquei cansada só de escrever.

 

Queria dizer que apesar de termos aprendido que isso é legal e que mulheres são incríveis por fazer tudo isso, não é! Não é legal! É estressante, estafante, adoecedor e não podemos normalizar isso. A sociedade romantizou esse comportamento e nós mulheres caímos nessa conversa. Hoje não precisamos mais disso. Podemos e devemos dizer: hoje não estou a fim de fazer nada! E se pudermos fazer outras mulheres perceberem isso, será uma grande revolução. É que não basta dizer que não vai fazer nada, temos também que não nos sentir culpadas por isso, afinal o mito da mulher que dá conta de tudo ainda ronda por aí e o mundo acadêmico colabora com isso.

 

Se os homens ao longo de décadas também tivessem sido expostos a esse mesmo nível de exigência social, eles também seriam capazes de fazer o que fazemos. Mas eles não fazem esse bocado de coisa ao mesmo tempo e não tem nada a ver com serem incapazes, não fazem porque não se submetem a um sistema de regras que os deixam doentes, afinal durante séculos eles criaram essas regras. Eles ficam doentes por outros motivos, mas não esses. Se submetem à lógica do produtivismo sim, mas só em nome do capital ou do ego, o que é a mesma coisa em certo nível.

 

Como o patriarcado ainda impera, é fácil alguns fortalecerem a ideia da mulher multifacetada que dá conta de tudo como algo incrível. Melhorem! Melhoremos! então vou parar por aqui, apesar de ter muito mais a falar sobre esse tema, vou ali fazer algo que seja extremamente improdutivo para fortalecer minha liberdade.

Débora Fofano

Débora Klippel Fofano, Petrópolis – RJ, licenciada e mestre em filosofia pela UECE, doutoranda em Filosofia e Sociologia da Educação na UFC, onde desenvolve pesquisa sobre Ideologia e Violência na Educação. Atualmente é professora da Rede Estadual de Professores do Ceará (SEDUC). Pesquisadora do Grupo Teoria Crítica, Filosofia Contemporânea e Educação(FACED/UFC). Também  pesquisa  filósofas e ensino de filosofia fazendo parte do coletivo de filósofas YebáBeló e do Fórum de Professores de Filosofia do CE. É criadora de conteúdo da página @filosofa.deinterrogacao no Instagram, do Podcast Perdidos na Paralaxe e do  Projeto Aconchego Filosófico. Militante Feminista organizada, também é mãe, muitas reticências, curte rock ‘n roll e vira crítica de arte depois de umas cervejas.