
Uma garrafa ao lado, Chico cantarolando suas canções e cartas espalhadas pela sala. Este era o ambiente em que se encontrava. Passara o dia pensando no amor, mais precisamente nos seus amores, aqueles que já se foram, nos que vivia e os que ainda estavam por vir. Um gole, uma estrofe e um trecho de uma carta, era assim que usava o tempo que passava. Lia, relia, bebia, ouvia, sentia e se perguntava por que as palavras eram as mesmas, a única coisa que mudava era o desenho da letra rabiscada no papel. Os mesmos ‘eu te amos’ estavam lá, as mesmas juras. Por que tudo aquilo fizera tanto sentido um dia e hoje eram apenas palavras borradas pelas gotas das lágrimas que brotavam dos seus olhos a cada pausa entre uma carta e outra. Tentava buscar o novo em cada uma, o diferencial, o particular de cada um que a amou e que a fez amar, para quem sabe conseguir entender o porquê de estar ali se mutilando pelas lembranças de outrora. Dentre todos aqueles papeis escolheu 3 cartas que lhe chamaram atenção. Na primeira viu uma frase que a fez beber mais um gole para que pudesse continuar a ler, dizia assim: ‘sempre estarei ao seu lado, não importa o que aconteça sempre estarei…’ nesse momento olhou para seu lado e lá não estava, deu um sorriso e pensou onde poderia estar nesse exato momento. Quem sabe escrevendo outra carta como esta? Bem provável. A palavra ‘sempre’ começou a lhe invadir, lhe causando dor e angustia. E se perguntava, por que dizer que é para sempre se sabemos que não é? Ou pior! Por que acreditamos no pra sempre? Despedaçou a carta e junto ali foi um pedaço do seu coração. A vida é assim nos deixa perder um pedaço do nosso coração quando um amor se vai, mas acaba nos dando outro com a chegada de um novo. Havia tirado aquela noite para lhe causar dor, porque sabia que a cura só chegava depois que as feridas cicatrizavam, por isso queria sentir toda a dor possível. Foi então que pegou a segunda carta, tinha recebido no dia do seu aniversário em meio a tantos abraços e beijos. Nela a expressão ‘pra sempre’ também se fazia presente. Mas não era isso que lhe chamava mais atenção, dessa vez usaram belas palavras, escrita sem erros, precisa, conseguiu através de cada palavra tocar seu íntimo, uma métrica perfeita, de fazer inveja a grandes escritores. Não era uma frase que lhe despertava atenção, mas todo o texto, toda aquela construção de uma vida que tinham vivido em pouco tempo e que estavam se dispondo a viver, tudo retratado nas linhas que se seguia. Continuava a ler e perceber que muitas das aspirações não chegaram a ser conquistadas, inúmeros desejos não realizados e planos de um futuro frustrados… tantas coisas, tantos tantos… Tudo tão verdadeiro, tudo tão cheio de vida. Mas só no papel, nada no real. Tinha certeza que o sentimento era um abismo, depois que se atirava nele não tinha mais volta. Mais um gole? Porque não. Se a bebida era uma droga, o amor podia ser considerado uma também. Vivemos sempre bebendo mais um gole de amor. Os primeiros descem suave, doce, já outros se tornam intragáveis, mas mesmo assim ainda continuamos até nos sentirmos cheios por completo, fartos daquilo que não cabe mais dentro de nós, aí colocamos para fora. Passamos um, dois, três dias mal. Depois estamos de pé novamente nos preparando para a próxima overdose. Então pensou que o amor poderia ser vendido em garrafas, porque assim poderíamos ler no rótulo os ingredientes que se faz presente nele e decidir se levaríamos ou não pra casa. Jogou a carta de lado e pegou a terceira. Esta estava mais viva, se faz presente e comprime seu coração como se ele estivesse preso em um arame farpado, mas também consegue libertá-lo. E ele fica ali, nesse ciclo vicioso, um dia preso e um dia solto. Notou que essa era diferente, pois não fazia juras, nem planos, era mais uma forma de manifestação de sentimento. Leu uma, duas, três vezes. Sentia dor na escrita, se propôs então a trazer para si essa dor e continuar seu masoquismo pessoal e particular. Precisava disso. Buscava sua libertação. As palavras rabiscadas de lápis num papel já amassado ficavam ressoando em sua mente. ‘retroceder’, ‘alívio’, ‘permitir-se’… Não tinha dúvida que diferente dos outros, esse amor ainda estava vivo, mas contido, ressecado, desidratado. Lhe parecia diferente dos outros. Mas se sentia tudo isso por que não continuar a vivê-lo? E se perguntava: O que podia ser mais difícil, vivê-lo ou deixá-lo ir? Resposta difícil de ser encontrada. E por ser tão difícil ‘os olhos se distanciam para não dizerem nada e calam concentrando-se em qualquer coisa para não se perder enquanto achados’. Quem tinha lhe escrito isto, conhecia seus medos, certezas e incertezas. E buscava uma resposta tanto quanto ela. Deu o último gole e ouviu Chico dizer ‘preciso conduzir um tempo de te amar’. E como se ele estivesse falando com ela, tomou aquilo como conselho e lei. Estava disposta a conduzir este amor, sem mais dor. Despede-se do Chico, a garrafa já vazia agora estava caída no chão, as cartas e os pedaços das despedaçadas continuavam espalhados. O corpo pesava, mas a dor lhe parecia mais amena. Deita no chão e os olhos se fecham em busca de um novo amanhã. Na esperança de quem sabe as respostas serem encontradas.

Manuh Beserra
Emanuelle Beserra, Fortaleza-CE, graduada e mestre em filosofia pela UECE, Doutora em Filosofia e Sociologia da Educação pela UFC, desenvolve pesquisas sobre cinema brasileiro, Escola de Frankfurt e os mass media. Tem como área de interesse o estudo da estética e da educação. Atualmente é professora do Instituto Federal da Paraíba – IFPB. Pesquisadora do grupo Educação, teoria crítica e filosofia contemporânea CNPq. Desenvolve projetos de cinema, criadora do projeto Cine Sertão Princesa. Nas horas vagas gosta de um batuque, é uma amante da música e da cultura de modo geral. E se é para falar de cinema, mesmo não sabendo ela vai!