O filósofo Frederic Gros considera que um dos trabalhos da História é diagnosticar o presente. Para ele a boa história não conta uma narrativa do passado sobre o passado, mas apresenta elementos para, a partir do passado, entender o presente. A questão de “Guerra Civil” é exatamente essa, só que o nosso presente é o passado de um futuro que parece caminhar irremediavelmente para a inevitabilidade de uma guerra civil. O Filme trata de um Road Movie em que 4 repórteres de guerra atravessam parte de uns EUA devastado por uma guerra civil que não se sabe ao certo ( o filme propositalmente não deixa claro) quem está contra quem.

Cabe a tais repórteres testemunhar o caos servindo de guia para o expectador de 4 figuras subjetivas da guerra, mas que facilmente poderiam ser confundidas com 4 espectadores de um telejornal de TV aberta em horário nobre: a niilista (Kirsten Dunst), o viciado em adrenalina (Wagner Moura), o cansado do terror (Stephen Henderson) e a jovem utopista ( Cailee Spaeny). Assim como os eventos cotidianos essa quatro figuras são apenas aspectos de posições subjetivas que cotidianamente oscilam em nós mesmos. Todos nós, em alguma medida, somos um pouco de cada. Mas, não é só nos protagonistas dessa viagem que essas posições subjetivas se revelam.

O conceito de figuras de subjetividade criando pelo filosofo italiano Antonio Negri é extremamente importante para entendermos a “Road Trip” do filme em um sentindo mais filosófico. Negri sugere que a crise de 2008 produziu alguns dispositivos de subjetivação que possuem um certo modus operandi mais ou menos regular. Em “Declaração: Isto não é um manifesto” ( titulo que estranhamente combina com o mote do filme), Negri retira da crise quatro dessas figura: o despolitizado, o mediatizado, o endividado e o securitizado. Não é que exatamente agimos de uma ou outra maneira, mas parecemos em alguma medida, mediante a situação de crise, oscilar por essas figuras; ainda que alguns de nós realmente cristalizem posições quase como o velho conceito de temperamento na teoria das personalidades.

Mas, saindo da crise e diferente de uma guerra entre Nações Rivais, uma guerra Civil parece conter as nuances de que qualquer pessoa pode tornar-se um inimigo diante das sórdidas motivações da guerra.

Em certa cena os repórteres se deparam com figuras armadas que dominaram uma cidadezinha. Um deles fala de um homem pendurado e torturado: ” aquele estudou comigo no ensino médio”. Em outra sujeitos trocam tiros e quando questionados em quem estão atirando responde: em que estive atirando em nós. Essas duas passagens mostram claramente a ” razão irracional” de uma guerra Civil. O inimigo em potencial pode ter cursado a escola com você.

A figura da subjetividade de uma guerra civil mais horrenda fica a cargo da interpretação de Jesse Plemons. Um nacionalista ao estilo “confederado” que sente prazer na carnificina e na violência decorrentes da guerra. É nesta figura que o filme flerta de fato com um filme sobre os horrores da guerra e deixa de ser somente uma trip macabra pelo Estados Unidos. Essas figuras parecem existir neste realismo ficcional para nos evocar um certo estado paranoide do mundo presente. Em guerra civil nós hoje somos o passado deles. Se a boa história conecta o passado ao presente, nesse difuso contínuo espaço tempo do filme eles são o presente do que um dia já fomos deles o passado.

Todavia, apesar da proposta complexa do filme, a execução dessa proposta não é exatamente harmônica. O filme oscila bastante de ritmo se transformando em uma trip que contem pequenas crônicas episódicas a cada parada tornando-se pequenas quests que servem para apresentar aquele mundo em estado de guerra. Mas, talvez, o maior pecado do filme esteja em sua tentativa de distanciar-se do próprio fato para tomá-lo como um documentário de si mesmo.

Aqui vemos a personagem de Kristen Dunst, em mais um papel brilhante, marcar a toada afetiva do filme ao assumir que o papel do fotografo de guerra é somente fotografar e nunca se envolver. Assim somos lançados em uma guerra civil sem história com a justificativa de que

o objetivo é mostrar que todos os lados têm seus próprios argumentos a serem documentarizados. Ainda que nas entrelinhas todo o contexto político do atual período eleitoral dos EUA estejam saltando a tela, o diretor Alex Garland optou por “supostamente” não explicitar qual lado e cada lado dos diversos conflitos que vemos ao longo do filme. Em entrevista ao veículo Polygon, Garland chegou a afirmar que seu filme não é um filme político no sentido convencional , pois sua real preocupação era mostrar o conflito através do, ainda que controverso, ethos do jornalismo de guerra.

O entendimento objetivo nos dirá que Guerra Civil é o produto mais caro da A24, portanto precisa se pagar, ou seja, precisa ser minimamente palatável ao maior público possível. Por outro lado poderíamos entrar na questão do papel político da arte, papel este de Wagner Moura, um dos protagonistas do filme, soube enfrentar com certa maestria na direção de Marighella. Assim, algumas posturas do filme podem e deve ser entendidas como um misto de dubiedade e “melindre” de aventurar-se por um tema que pode ser comercialmente complicado.

Eu diria que de zero a 10 eu fiquei 8,5 e meio vezes perdido na paralaxe desse filme.

Maneu Messias

Maneu Messias. Psicólogo, psicanalista, músico, apaixonado por neurociências e ciências em geral. Doutor em Psicologia. Professor universitário desde 2016. Amante de cinema, games, séries e culturapop. Ainda desejando fazer faculdade de artes visuais e economia. Fortemente chegado em esportes radicais como escalada e paraquedismo e qualquer outra coisa que a minha ansiedade diga pra fazer. Co-Host do podcast Perdidos na paralaxe.