Em 1996 o cartunista autor da então popular tirinha Dilbert, Scott Adams, tenta imaginar ironicamente como seria o material de divulgação de um cubículo de trabalho, baias modulares comuns nas grandes empresas nos anos 80 e 90. Nesse hipotético anúncio ele comparava os cubículos a “inspiradores” lugares e momentos, entre eles o cercadinho para bebês:

“Uma lembrança da exuberância da juventude e da emoção de se sentir cativo por pessoas estranhas, que falam um monte de coisas que ninguém entende e o pune por motivos que você não compreende”.

É bem provável que quem passou os últimos 14 anos vendo filmes da Marvel, cresceu e ingressou a vida adulta, vibrou com Guerra Infinita e Ultimato e ficou satisfeito com a referências e “fan services” do último Homem-aranha tenha invocado esse mesmo sentimento ao assistir o último filme do diretor Taika Waititi: o de estar preso em um cercadinho para bebês.

o diretor Taika Waititi - divulgação

Com sua primeira cena de ação em uma deslumbrante – e delirante – batalha entre o Deus do Trovão e um exército de “muppets” em frente a um palácio de cristal, Thor: Amor e Trovão (Thor: AeT) é provavelmente o mais Disney dos filmes da Marvel, assumindo-se da forma que qualquer história que mistura deuses e super-heróis poderia enxergar-se: como uma fábula infantil.

Thor: AeT pode ser lido, nesse sentido, através da teoria freudiana das ilusões melhor esboçada em O futuro de uma ilusão de 1927, porém que acompanha toda a psicanálise ao lado da teoria das fantasias, pois as duas são, em alguma medida, uma Wunscherfüllung, uma operação psíquica de realização do desejo.  De maneira simplória a função da fantasia é criar mecanismo de inserção no laço social enquanto a ilusão tem a função de proteção frente ao desamparo dos sujeitos. Tanto é que para Freud as religiões não são fantasias primordialmente, mas ilusões que cumprem de manutenção do narcisismo infantil frente ao sujeito gradativamente engolido pelo princípio da realidade na vida adulta.

O que o conceito de Ilusão em Psicanálise e Thor: Amor e Trovão têm a ver?

O filósofo Slavoj Zizek nos lembra, na Visão em Paralaxe, que o capitalismo oferece a “ilusão” da existência de um centro cognitivo no comando das operações planejando maquiavelicamente como consumir e explorar a força vital humana, por outro lado o termo ilusão opera da maneira essencial aqui. Essa é uma crença coletiva tal qual uma religião, afinal como diria Walter Benjamin, o capitalismo é uma religião de um culto que não tem fim.

Essas são características visivelmente encontradas nas eras das franquias em Hollywood. Uma religião que não tem fim. Assim as franquias são esgotadas ao limite de sua criatividade enquanto mantemos a ilusão da existência de um centro cognitivo (Kevin Feige) no controle. Thor: AeT assim como Eternos, é uma das expressões fundamentais desta racionalidade caótica.

divulgação marvel studios/disney

Ainda que o filme não necessariamente seja ruim, não sabe exatamente para onde quer ir uma vez que o tempo inteiro precisa narrar uma história com começo meio e fim e preparar essa história para a continuação do universo e da franquia. Assim, em Amor e Trovão, vemos uma tentativa de Taika Waititi de jogar com diversos gêneros narrativos como conto/fábula. ação, drama, sátira, comédia, comédia romântica, em um caos narrativo que poderia ter sido incrível, ainda que a maestria da estética do diretor o seja, (porém, vide Tudo em todo lugar ao mesmo tempo) se não houvesse o compromisso de que este filme abra a porta para mais outros tantos filmes.

Thor nesse sentido funciona como uma grande ilusão da religião MCU tanto internamente ao próprio universo quanto para o público. Ele é mais um pedaço mitigado da satisfação promovida pela Indústria cultural que, como colocam Adorno e Horkheimer, oferece esta satisfação em migalhas. Não se assiste Amor e Trovão para ver Amor e Trovão, mas para ver o próximo passo da fase 4 e da fase 5 do MCU.

Todo esse palavriado cabeçudo levaria a crer que o filme é ruim ou tão entediante quanto esta crítica, mas não. O filme é, para quem gosta do humor produzido por Waititi, extremamente engraçado com um humor bizarro como, por exemplo, os Bodes mágicos gritando em suas aparições no filme.

Thor de longe não é um filme vazio e eu diria o contrário. É um filme excessivamente cheio ao ponto de ser quase impossível comentar todos os temas presentes na trama em uma crítica de poucas páginas.

A apresentação inicial do vilão Gorr delimita as motivações de quem foi traído por suas crenças, zombado por sua inocência e confrontado com as perdas e consequências por essa fé. Mas se esses temas são maduros em sua complexidade existencial o filme os torna acessíveis com uma roupagem e abordagem infantil. O Deus provedor em que Gorr acredita o ridiculariza e o ameaça, mas em um cenário pitoresco, cercado de seres cartunizados e coloridos, com corpos compostos de flores e outras belezas naturais em uma linguagem empostada e caricata, alvejado ele sangra em tintas luminosas, como todos ferimentos ao longo do filme.

As cores são importantes para o universo infantil assim como para Amor e Trovão, e por causa disso Gorr ao assumir sua missão se transforma ele mesmo no centro da ausência dessas. Grandes expectativas foram criadas ao longo dos últimos meses acerca de Gorr, seu ator Christian Bale é famoso pelas transformações corporais, seu comprometimento com seus papeis dramáticos e pela trilogia do morcego de Nolan, mas aqui Gorr é representante de um arquétipo também muito familiar as crianças, o do Boogeyman, Picho-papão ou Baba-Yaga.

Gorr espreita e se movimenta nas sombras e delas é capaz de invocar todas formas ameaçadoras que uma criança é capaz de imaginar na escuridão. Não é por acaso que a maior ameaça às crianças da trama começa para elas a noite em seus quartos, Gorr é um homem-do-saco, cósmico porém um homem-do-saco.

O vilão Gorr, por Christian Bale - divulgação

A ameaça não é tanto para integridade física das crianças, mas para a crença infantil de quem haveria um poder organizador divino ou patriarcal que as mantém a salvo. A consequência da morte dos deuses que Gorr busca não é a extinção desses seres em si, mas o rompimento da crença das crianças na figura de Thor, que tem nesse filme seu retrato mais pueril. O asgardiano assim como seus companheiros e as crianças acredita num deus patriarcal e por isso se conecta a elas: Thor é o Deus que acredita em deuses, Korg acredita no amor, Valkiria acredita em reatar laços em batalha e Jane acredita em sua cura, acredita em sacrifícios e por fim, acredita na expectativa do melhor no outro.

No centro da descrença, na dimensão sombria onde todas as cores parecem querer fugir, onde até os deuses são pintados monocromáticos às sombras de uma justiça cinza – alfinetada no Snider? – apenas as crianças retêm suas cores, mesmo que cativas. No clímax Taika coloca as crianças nesse papel decisivo, primeiro abraçando a luta ao lado de seu herói, empoderadas por ele, depois mesmo que por poucos frames retratadas como a entidade máxima daquele universo – Eternidade – ele manda a real: Apenas na imaginação de uma criança deuses e super-herois convivem e colidem.

Nesse sentido, Gorr trás para o debate o tema da própria religião com Ilusão em termos freudianos. Ao perceber que o deus que venerava não se importa com a existência da sua espécie, o vilão de posse de uma arma poderosa (sem explicação de onde vem esse poder, pois a Marvel não pode usar a origem oficial da arma que pertence ao universo de Venon) inicia uma caçada para se vingar de todos os deuses criando, assim, uma nova ilusão: a de que o universo seria melhor sem deuses. Estamos aqui no universo infantil do psiquismo humano em que as ilusões não podem ser destruídas, mas apenas substituídas por outras.

Nathalie Portman como a Poderosa Thor - divulgação

O excelente tema que gira em torno do vilão desenvolve-se, mas ainda mantém um impacto só sugerido para o expectador durante a apreciação do filme, pois se existe impacto desta trama ele ira reverberar em algum ponto longínquo como um easter egg dentro do MCU. É preciso notar que nenhum deus é realmente morto em tela exceto na primeira aparição do vilão. Assim, o próprio título de “carniceiro dos deuses” cai em um problema básico da narrativa cinematográfica: “não me conte, me mostre”. A própria ameaça de Gorr perde um pouco de seu tamanho ao nunca ser mostrado de fato como um “assassino de deuses” ainda que mantenha-se essa tonalidade de bicho-papão.

O mesmo acontece com o esperado retorno da oscarizada Natalie Portman como Jane Foster. A “Thora” acabe sendo um recurso narrativo denominado “Escada”, sua função, ainda que renda belas cenas de ação e drama, é primordialmente criar um recurso narrativo para o próximo filme mesmo que seu arco se resolva neste (ou não?).

Por outro lado, é preciso ressaltar que quando uma escada é uma atriz do porte de Natalie Portman sua dimensão é proporcional as escadas infinitas de Valinor do universo de O Senhor dos anéis. A “Thora” faz para a dramédia romântica o mesmo papel que as crianças fazem para a fábula, ou seja, impulsiona a trama em  direção aos fechamentos dos arcos de evolução do Personagem que, no caso de Thor o eterno homem branco da Marvel, parecem não acabar nunca.

No apagar das luzes, em seu epílogo, como todo boa fábula infantil o filme lança mão do recurso narrativo de algumas “morais da história”: somente caminhando ao lado de uma nova geração de fãs é que o universo cinematográfico da Marvel possui uma chance de permanecer relevante. O Thor de Taika é talvez tão pueril quanto o fã deste universo que insiste que, 14 anos depois, esses filmes vão ser continuar sendo feitos para ele. Talvez exista alguma simetria na fé em Zeus e na fé em Kevin Faige (nosso suposto centro cognitivo do MCU)

Talvez seja a hora dos fãs se libertarem de seus grilhões – ou cercadinho de bebê – e pararem de esperar que pessoas que os mantém cativos, falando coisas que ele não entende por motivos que ele não compreende, vão lhe entregar exatamente o filme que eles esperam. Porque afinal, sejamos francos, acreditar em seres superpoderosos esvoaçando capas vermelhas é uma ilusão infantil ainda que necessária para a manutenção do psiquismo adulto.

E é na lógica da criação de novas ilusões que a Disney/Marvel consegue manter o expectador preso em um ciclo infinito de um signo ritual que será usado no próximo filme. Na crença de um centro cognitivo cada vez mais abalado no MCU sabe-se lá qual o futuro desta ilusão.

Maneu Messias

Maneu Messias. Psicólogo, psicanalista, músico, apaixonado por neurociências e ciências em geral. Doutor em Psicologia. Professor universitário desde 2016. Amante de cinema, games, séries e culturapop. Ainda desejando fazer faculdade de artes visuais e economia. Fortemente chegado em esportes radicais como escalada e paraquedismo e qualquer outra coisa que a minha ansiedade diga pra fazer. Co-Host do podcast Perdidos na paralaxe.

Reinaldo Feurhuber

Reinaldo Feurhuber cursou licenciatura em Filosofia na UMESP, publicitário, atua como diretor de arte e é também ilustrador em diversos projetos, incluindo capas de livros e arte finalizações de quadrinhos no Brasil e nos EUA.