Estou aqui em Salvador prestando um concurso e começo a olhar que na sala em que faço prova tem apenas três mulheres (contando comigo) e pouco mais de 15 homens.  Olho para uma das mulheres e na hora ela entende e diz: “Somos só nos 3 mesmo”.

Depois da prova volto para casa com adrenalina a mil e o segundo comentário sobre a prova que sai da minha boca é: “Éramos só 3 mulheres em uma prova com pouco mais de 25 pessoas presentes em um concurso com uma banca composta e recomposta por homens”. Falo isso para um grupo de pessoas acadêmicas da medicina. Depois do primeiro choque sobre o tema, as 5 horas de prova e o cpf em todas as 15 páginas para construção do texto/resposta, mas o que gerou mesmo um debate prolongado e sério foi o choque de todos ao saber que haviam apenas 3 mulheres na prova.

A noite vai passando, o jantar se encaminhando pro final e vez por outra o assunto:  ‘a prova da Raquelzinha’ volta a ser tema de debate e entre um choque e outro, um riso e outro, alguém comenta: ” não sabia que na filosofia haviam poucas mulheres”. Nessa hora a coisa fica seria porque eu tenho que explicar que o problema não é pouca mulher na filosofia, é que nós temos menos acesso a pós-graduação que os homens e menos ainda a concursos, é uma questão estrutural. Isso é sintomático, aliás, é machismo. Nessa hora, ouço o barulho da fina camada de vidro do tabu sendo quebrado. “Mas como assim na filosofia existe machismo? “; eu apenas sorriso e digo: “é minha gente, tem sim e tem é muito” (riso debochado e desolado) e outro debate se instaura: Como soa estranho para as pessoas que não são da área da filosofia e demais ciências humanas se chocam ao saber das reproduções machistas presentes nesses cursos.

A noite passa, sobremesa e drinks chegam e alguém na mesa comenta sobre eu ser professora de dança e eu bem feliz afirmo:  “Sou dançaria desde 2015”. Ao firmar isso com alegria, logo me peguei pensando que entrei na dança em 2015 e já me sinto dançarina desde o começo e enquanto isso, estou na filosofia desde 2006 (façam as contas da idade da gata), mas só lembro de me reconhecer filósofa desde 2018, quando já era dançarina e quando já estava finalizando a minha tese. Dois mil e dezoito!!! É isso mesmo (façam as contas de novo). Por que tanta demora em se reconhecer como profissional de algo que eu estou imersa desde 2006? Essa pergunta levou a outra: Por que dizer filósofa ainda precisa ser dito e depois justificado com todo o meu currículo acadêmico?

Machismo nosso de cada dia.

O mesmo que faz um concurso com pouco mais de 25 concorrentes presentes (40 inscritos no total) ter apenas 3 mulheres no dia da prova. O mesmo que faz a gente dizer que é professora antes de dizer que é filósofa, nos faz estudar muitas vezes muito mais e brigar muitos mais por espaços na academia e ao mesmo tempo sempre duvidar da nossa capacidade e que ao mesmo tempo me faz questionar: Ué, mas e eu não sou filosofa? Porque não posso então estudar um tema de fora da filosofia com um olhar filosófico sem ter que justificar sempre que isso é filosofia? Essa é a pergunta que eu faço como resposta as pessoas = homens que questionam minhas pesquisas desde 2015. Óbvio que eles não me respondem, mas fazem questão de me dizer como eu devo pesquisar e quem eu devo pesquisar. (Podem revirar os olhos também).

Respondendo a minha própria pergunta título: me afirmei como dançarina mais rápido porque nunca senti que precisava justificar a minha dança e meu pensamento. Ninguém me falava: você tem que criar algo só seu para ser dançarina. Me reconheci dançarina não porque aprendi a dançar entre mulheres, mas porque não havia uma estrutura opressora me dizendo o que é e o que não é uma dançaria, o que eu podia e não podia dizer/ mover para ser dançarina do ventre. Me afirmei dançarina primeiro e só depois filósofa, porque foi a dança que apresentou para a filósofa em mim a beleza que é estudar, treinar, criar e não duvidar de si. A minha filósofa ganhou voz no dia em que ouviu do coleguinha de filosofia que era uma vadia arrogante e respondeu prontamente, no ímpeto de um movimento resoluto da dançaria: “ A vadia arrogante além de filósofa também é dançaria, faço dançando o que você demora horas sentado numa cadeira para fazer”. Me reconheci dançarina porque a filósofa em mim precisava ter voz, voz que fala com o corpo inteiro e de corpo inteiro. A minha afirmação: sou dançarina do ventre! Me ajudou a reconhecer a importância política e filosófica de dizer: Eu sou filósofa, Raquel Rocha, muito prazer.

Raquel Rocha

Filósofa, dançarina do ventre, produtora, podcaster. Graduada e mestre em Filosofia pela UECE, doutora em Filosofia UFRJ. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Universitária CLiPES (UFBA), onde coordena a linha de pesquisa Estudos e Poéticas do corpo; do Grupo de Teoria Crítica e Educação (FACED/UFC); do NuFFC – Núcleo de Filosofia Contemporânea Francesa (UFRJ). Dançarina do ventre com formação básica pela CoArt (UERJ) e formação continuada pelo Oriental Studio de Dança (RJ) e curso de extensão em dança do ventre “ Despertar da deusa” pela Universidade Federal do Cariri. Desenvolve pesquisas acerca das temáticas de filosofia contemporânea, ética, política, estética, feminismo, corpo, subjetividade, educação, história da filosofia, cultura. Atua sempre em um esforço de pensar a filosofia a partir do corpo e das questões cotidianas.