E se você fosse quem você seria se você fosse quem você seria se não fosse o quem você é por não escolher o caminho que te fez ser quem você não seria quando se tornou quem você é?

Essa é a premissa básica de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”. A questão é que de básico não tem nada. O conceito de multiverso da loucura aqui é levado até às últimas consequências e tudo está literalmente acontecendo em todo lugar e ao mesmo tempo ao longo do filme. Nesse sentido, “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é a realização objetiva da frase de “Dr. Estranho no não multiverso do MCU”: “As coisas saíram um pouco de controle”.

O contraponto de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” em relação ao multiverso da loucura é não só inevitável como um mal necessário.  Enquanto a Marvel Estúdios disponibilizou 200 milhões de dólares, o filme dos Daniels e da A24 tem um orçamento de 25 milhões, valor que pode ser alto se você pensar em quantos pirulitos é possível comprar, porém é um baixo orçamento para filmes de Hollywood. Com isso, “ Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” ( é importante que se repita o nome muitas vezes) mostra como um filme de pequeno orçamento pode dar soluções criativas, leia-se, muito criativas para suas limitações orçamentárias.

Sem malabarismos manuais, o filme joga com ângulos, efeitos simples, contraposições e justaposições de câmera para mostrar o efeito de viagens entre os universos do multiverso. Tudo isso praticamente sem usar milhares de locações e com poucos CGIs de tal forma que o uso destes é pouquíssimo perceptível. Tudo isso só é possível graças ao excelente e organizado roteiro. “

Ora beirando as comédias de Kung Fu chinesas ( com umas cenas tão boas que são dignas de kungfusão), ora se valendo da mais complexa filosofia e física contemporânea ( ainda é um filme da A24), ” Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” reinventa em um nível que só posso imaginar como freudiano o drama familiar.

E se todos, absolutamente todos os dramas de parentesco se repetissem ao longo de todos os multiversos?  Se estivermos fadados, mesmo não sendo quem somos, a ser como somos? Existe aqui uma tensão entre a repetição como tragédia e como farsa e um certo eterno retorno.  A reimaginação edipiana nos apresenta aqui, de maneira magistral, a polêmica noção de “universalidade do Complexo de Édipo”.

Na narrativa freudiana, o Édipo nada mais é que a estrutura mais elementar das relações de parentesco, ou seja,  haveria nesse sentido ( pelo menos a nível do que chamamos de civilização ocidental) uma repetição primal na estrutura familiar. Onde houvesse os lugares ocupados por mães, pais e filhos a tragédia edipiana estaria fada a repetição não por ela se anterior ao parentesco, mas por ser inerente a própria condição de parentesco. Para Freud o Édipo é condição, causa e consequência das relações familiares ao mesmo tempo.

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo reimagina esse drama familiar de maneira multiversal e nada mais simboliza isso do que o diálogo das pedras em um universo onde as condições de existência da vida não sugiram.  Evelyn e Joy conversam sobre a falta de sentido em duas pedras terem preocupações o que respondido com um não sonoro “Eu sou sua mãe”, o mais forte argumento da história da modernidade ocidental. E se em algum lugar onde a vida não existiu ainda houver parentesco o Édipo freudiano estará lá.

Por isso e precisamente por isso tudo gira em torno de uma trama de gênero e sexualidade, o lugar onde o Édipo insiste e resiste. Na Homoafetividade temos, em alguma medida, os limites do Édipo impondo-se sobre si mesmo. A quebra do ciclo reprodutivo heternomartivo da modernidade é, talvez, a maior feridade narcísica do mundo contemporâneo. Não é só sobre não ser seus país, é sobre se alocar no gênero narrativo diametralmente oposto e contar outra história. Não é sobre matar a tradição, mas sobre imagina-la em um prisma diferente. Por isso, “ Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é um filme sobre a tensão entre a tradição heteronormativa ( o passado), a revolução sexual ( o futuro) e como o agonismo passado e futuro fraturam o tecido do presente na realidade do multiverso.

O desafio de como juntar a mais complexa física, filosofia e Psicanálise com o baixíssimo orçamento do Filme ( comparado  aos padrões de Hollywood) é superado com maestria com um roteiro que constantemente dobra-se sobre si mesmo com uso de metalinguagem e dos mais variados clichês hollywoodianos ( até o guaxinim cozinheiro).  Em “ Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” a capacidade de abordar o mesmo assunto em uma paralaxe infinita de perspectivas ainda que mostrando só 5 ou 6 delas é o suficiente para tornar o multiverso crível. Ainda que você veja de fato algumas poucas Evelyns, Waymonds, Joys etc É absolutamente crível que um universo infinito desses mesmos personagens existem de maneiras diferentes.

E como é gostoso ver Michelle Yeoh lutar ( algo que não se via nesse nível de beleza desde O Tigre e o Dragão). Que genialidade trazer para o centro da trama Michelle Yeoh. Evelyn não poderia ser vivido por outra atriz que coloca em debate no cinema aquilo que TopGun Maverick mostrou ser uma ferida narcísica de Hollywood: a velhice no universo feminino. Enquanto, diga-se de passagem maravilhoso, TopGun Maverick furtou-se desse debate, Michelle Yeoh mostra o que o que a fez genial em “O Tigre e o Dragão” não foi sua idade mas seu talento.

O filme acerta de maneira genial e,m não trazer uma Evellyn jovem, pois não é sobre consertar os erros com viagens no tempo, mas sobre o que cada escolha poderia ter feito de nós no nosso presente e não no passado ou no futuro. O mesmo pode ser dizer de Ke Huy Quan ( o eterno Data de os Goonies). Weymond é a genial imaginação de como seria data adulto. Em algum lugar do multiverso Data tornou-se Weymond.

Viagens multiversais, dramas familiares, física, filosofia e Kung Fu conduzido do jeito que somente a sétima arte poderia mostrar. ” Tudo em todo lugar ao mesmo tempo ” é o verdadeiro suco do cinema e do que a arte é capaz de apresentar.  Desde ” Parasita” e ” Os segredos dos Seus olhos” eu não terminava um filme tão maravilhado com a arte do cinema.  Tudo em todo lugar ao mesmo tempo certamente merece um lugar no panteão de melhores filmes da história do cinema no século XXI.

Maneu Messias

Maneu Messias. Psicólogo, psicanalista, músico, apaixonado por neurociências e ciências em geral. Doutor em Psicologia. Professor universitário desde 2016. Amante de cinema, games, séries e culturapop. Ainda desejando fazer faculdade de artes visuais e economia. Fortemente chegado em esportes radicais como escalada e paraquedismo e qualquer outra coisa que a minha ansiedade diga pra fazer. Co-Host do podcast Perdidos na paralaxe.